segunda-feira, 19 de março de 2018


Por que tenho orgulho de ser um homem negro?


Por que tenho orgulho de ser um homem negro?



Ainda que…
Ainda que nos vejam através da lente do racismo, eu me orgulho de ser um homem negro; apesar dos insultos, repulsa e da hipocrisia, eu me orgulho de ser um homem negro; independente do medo, julgamentos morais e generalizações, eu me orgulho de ser um homem negro.
Mesmo que nossas experiências sejam desqualificadas em prol de slogans e palavras de ordem, eu me orgulho de ser um homem negro.   
Penso que ter esse orgulho seja um dos principais pré-requisitos para reivindicarmos formas de masculinidades negras que não estejam tuteladas pela masculinidade do homem branco, assim como, é também uma possível consequência das próprias modalidades de enfrentamento ao racismo e busca pelo autoconhecimento.
Ademais, ter orgulho do que somos, é, na maioria das vezes, um caminho longo, árduo, porém libertador. Este texto é pra todos nós homens negros: para o religioso ou ateu, para o mocinho e o bandido, para o desempregado, sub-empregado ou bem empregado, para quem bateu ou apanhou, para o de esquerda e de direita, os de “tinta fraca”, e os de “tinta forte”, para o negão e para o neguinho, para o homem negro de qualquer sexualidade e tantos outros que com toda sua riqueza não cabem aqui.
Leia também: 
Minha escrita é para vocês e a essência de tudo que tenho pra dizer é: tenham orgulho de serem homens negros.
Say It Loud – I´m Black and I´m Proud[1]
Eu poderia falar da honra de sermos os primeiros homens da espécie humana. Discursar sobre os grandes feitos das civilizações africanas pelo mundo, invenções de cientistas, façanhas de atletas, das proezas de valorosos homens negros através da história e de homens comuns que lutam todos os dias pela sobrevivência. Tudo isso me enche de admiração e respeito, mas o que me dá orgulho mesmo é o nosso papel vital na luta pela liberdade do povo negro.
O homem negro é peça indispensável para a produção de masculinidades não calcadas nos valores coloniais da branquitude, esse potencial advém do nosso lugar social instável e perigoso na dinâmica entre raça e gênero, o que quero dizer, é que, estar em uma sociedade patriarcal supremacista branca, fazendo parte do segmento masculino-racial derrotado pela barbárie do colonialismo europeu, não é um lugar que se queira estar.
Sem rodeios e ingenuidades: o patriarcado branco não foi “inventado” para contemplar homens negros, indígenas, ou os “não-brancos” em geral, mas sim para nossa domesticação e ruína. Como lidamos com isso e que sugestões apresentar, é uma parte importante do que proponho neste texto. 
Aprendendo a ser um homem negro
Ninguém nasce sabendo o que é ser homem, isso se aprende, basicamente, com outros homens, e são eles que validam nossa masculinidade, é assim que nos tornamos homens. No entanto, a pergunta é: quem define o que é homem? O homem branco. A pretensão de universalidade e neutralidade produzida pela branquitude masculina empresta-lhe um poder normativo sem igual, fazendo com que seja tomada como medida de (quase) todas as coisas.
Vejamos o famoso homem desconstruído, via de regra, é aquele indivíduo oriundo das classes médias, com educação superior, sofisticação cultural, flexível quanto ao papel social masculino, bem-sucedido na profissão, ideologicamente progressista (ciente de seus privilégios, sensível às questões das “minorias”) e branco. Uma espécie de príncipe encantado pós-moderno, o que apenas ratifica seu status social podendo negociar algumas de suas prerrogativas patriarcais, sem alteração substancial na dinâmica de poder, mantendo-se como modelo de masculinidade exemplar.
Assim, “algoz” e “redentor” se mesclam em um único ser, branco e pleno, cabendo ao homem negro e aos “outros homens”, nesse conto de fadas contemporâneo, serem vistos como os machistas por excelência, degenerados crônicos e moralmente deficitários, ecos da estereotipia colonial repaginada. 
Com efeito, nossa constituição não desconsidera as características ditadas pelos homens brancos. Assim, nossa afirmação de masculinidade passa, em certo grau, por imagens brutalizadas do tipo: “Ser negão de verdade”, “Ter pegada”, “Bem dotado”, “Força física descomunal” (FAUSTINO, 2014)[2].
Aquele que não conseguir corresponder com tais atributos corporais enfrentará sérios problemas em seu processo de socialização e identidade. Para o professor de literatura Mark Sabine “… a psique do homem negro colonizado só poderá recuperar-se do traumatismo quando esse homem repudiar não apenas a máscara branca que julga ser o seu direito de nascença, mas também a máscara negra que o colonizador lhe impõe” (SABINE, 2011, p.199)[3].
Em outras palavras, não querer ser branco, nem o negro que o branco inventou. Para tanto, o patrimônio cultural africano e afro-brasileiro é peça-chave.  
O Homem Negro Vida
Em primeiro lugar, homens negros não se resumem a teses acadêmicas e experiências pontuais, somos o “negro-vida” [4], dotados de uma energia ancestral incapturável, “A masculinidade é agressiva, instável, combustível. É também a mais criativa força cultural da história.” (PAGLIA, 1993, p.64)[5]. A aliança entre essa vivacidade criadora, com arquétipos de inspiração afrodiaspórica pode fornecer subsídios na elaboração de masculinidades negras que rompam com profundos mecanismos racistas e sexistas, que agem não só nas estruturas objetivas como também nas cognitivas, transformando homens “cabisbaixos, envergonhados, curvados ao peso da melanina” (LOPES, 2006, p.10)[6], em homens que realmente sabem quem são, onde estão e para onde vão.      
No texto Nós matámos o cão-tinhoso: A emasculação de África e a crise do patriarca negro, Sabine relaciona o conto do moçambicano Luís Bernardo Honwana, “Nós matamos o cão tinhoso”, com o romance anti-segregacionista To kill a mockingbird da escritora Harper Lee, fazendo uma leitura crítica dos valores da masculinidade portuguesa devido aos seus aspectos fortemente ligados ao empreendimento colonial, que exalta a violência, crueldade e covardia, reivindicando seu domínio através da força. Longe disso, as masculinidades africanas tradicionais são valorizadas pelos “… ideais de coragem, liderança, compaixão, e a entrega de força física e perícia ao bem comum, ao invés da glória pessoal”.(SABINE, 2011, p. 188).       
Já no poético livro Homens da África (2012)[7], o escritor Costa-Marfinense Ahmadou Kourouma apresenta quatro arquétipos de homens negros africanos: o Griô, o Príncipe, o Caçador e o Ferreiro. O Griô representa o homem conciliador, artesão da palavra e de grande poder inventivo. Um homem que preza pela capacidade mental e não pela força bruta e truculência. A antítese do estereótipo do homem negro violento e estúpido. O príncipe simboliza o senso de responsabilidade para com o seu povo, educação e liderança. Figura que se contrapõe ao negro irresponsável e imaturo. O caçador é zeloso e protetor para a sua coletividade, provendo-a de alimentos até curas. Esse arquétipo não admite o estigma do homem negro negligente. E por fim, o ferreiro como um sábio, conhecedor dos mistérios do mundo. Hostil à noção de incultos que carregamos.
Na diáspora afro-brasileira encontramos exemplos masculinos poderosos no panteão religioso de matriz africana. Xangô encarna o senso de justiça, autoridade e poder. Oxalá o pai da humanidade, representa paz, serenidade e superação. Não podemos esquecer de Zumbi dos Palmares, um personagem mítico-histórico, que representa a bravura e luta do homem negro pela sua coletividade. 
No campo dos símbolos, os adinkras (criados originalmente pelo povo Akan de Gana) expressam aspectos calcados na agência histórica dos povos africanos. O ideograma Sankofa significa voltar e apanhar aquilo que ficou para trás, aprendendo com o passado, para construir o presente e o futuro (NASCIMENTO, 2008)[8] aponta-se desse modo, para uma concepção de respeito e afeto à nossa memória coletiva ancestral, buscando preencher “o vazio de referências oficiais imposto à maioria dos afrodescendentes brasileiros” (NASCIMENTO; SEMOG, 2006, p. 16). 
Essas referências na maioria das vezes não se encontram em um passado longínquo, na verdade habitam muitas das nossas práticas cotidianas e jeitos de ser, é preciso notá-las para cultivá-las.
Dessa forma, sem pretensões puristas nem maniqueísmos, por que nos pautaríamos por modelos de masculinidades branco-ocidentais usados historicamente para nos subjugar, se possuímos os nossos concebidos para nos fortalecer? A afirmação identitária refletida e orgulhosa mostra-nos a beleza e a força da masculinidade negra, nossa “… própria força vital, chamada axé entre os iorubanos, ngolo entre os congos, tumi entre os acãs, baraka entre os africanos arabizados” (LOPES, 2006, p. 9).
E você tem orgulho de ser um homem negro? Por quê?
Henrique Restier da Costa Souza é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Relações Étnico-raciais pelo Centro Federal Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ)  e Doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ).

[1] Tradução livre “Diga alto – Eu sou negro e me orgulho. Música escrita por James Brown e Alfred “Pee Wee” Ellis em 1968.
[2] FAUSTINO, (NKOSI) Deivison F. (2014). O pênis sem o falo: algumas reflexões sobre homens negros, masculinidades e racismo. In: BLAY, Eva Alterman (Org.). (2014). Feminismos e masculinidades: novos caminhos para enfrentar a violência contra a mulher. São Paulo: Cultura Acadêmica, p. 75-104.
[3] SABINE, Mark. Nós matámos o cão-tinhoso: a emasculação de África e a crise do patriarca negro.Via Atlântica, São Paulo, n. 17, p. 187-200, june 2010. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/50549/54665>. Acesso em: 20 oct. 2017.
[4] Conceito de Guerreiro Ramos.
[5] PAGLIA, Camille. Sexo, arte e cultura americana. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
[6] LOPES, Nei. Abdias, Semog, “Negros-vida”. In: SEMOG, Éle; NASCIMENTO, Abdias. Abdias Nascimento o griot e as muralhas. Rio de Janeiro: Pallas, 2006, p. 9-12.  
[7] KOUROUMA, Ahmadou. Homens da África. São Paulo: SM. 2012.
[8] NASCIMENTO, Elisa larkin (org.) A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro. 2009, p.29-54.

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